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Desafios migratórios

A representante portuguesa da Organização Internacional para as Migrações, Marta Bronzin, está no EM FOCO para uma entrevista sobre os grandes desafios migratórios da atualidade.
 
P: Quais os grandes desafios migratórios da atualidade?
R: Não há dúvidas que vivemos num período de mobilidade sem precedentes, em que 1 em cada 7 pessoas é um migrante. Assistimos também a múltiplas e prolongadas crises humanitárias ligadas aos conflitos em curso, e que já geraram o número mais alto de refugiados e deslocados internos desde a Segunda Guerra Mundial. A isso, somam-se situações prolongadas e difusas de abusos de direitos humanos e perseguição em vários países, que empurram as pessoas a sair em busca de segurança e melhores condições de vida.
Aos desafios que este contexto de alta mobilidade traz, não se pode responder só com medidas de curto prazo. São necessárias medidas mais ambiciosas e de longo termo. É necessário mudar o discurso sobre as migrações, para que estas não sejam encaradas como um problema que deve ser resolvido mas como um processo a ser gerido para benefício de todos, países de destino, de origem, e dos próprios migrantes. A mobilidade humana sempre existiu e continuará a existir. Políticas que tenham por objetivo travá-la dificilmente serão eficazes. Os Governos enfrentam o desafio de conjugar o controlo das suas fronteiras com a gestão de estes movimentos migratórios de larga escala, e ao mesmo tempo garantir o respeito dos direitos básicos dos migrantes.
 
P: Há muitos imigrantes a pedir para voltar aos seus países de origem? Quais os motivos apresentados?
R: No âmbito do apoio que a OIM dá através do Programa de Apoio ao Retorno Voluntário e à Reintegração (ARVORE), registamos ao longo dos últimos 10 anos um aumento constante dos pedidos de assistência ao retorno.
Até 2008/2009, este aumento é em grande parte atribuível a um melhor conhecimento do programa entre a comunidade migrante e a uma maior capacidade de resposta do próprio programa.
Nos anos a seguir, o aumento está ligado à crise económica, que teve um impacto mais forte nos sectores económicos mais instáveis, como a construção civil, o comércio, e a restauração, que são também os que empregam um grande número de imigrantes. Esta situação levou a um pico de pedidos em 2011. A partir daí, diminuíram gradualmente. Muitas pessoas já voltaram e ao mesmo tempo a população estrangeira em Portugal começou a diminuir.
 
P – Que tipo de ajuda presta o Programa de Retorno Voluntário e Reintegração? Qual o balanço do período 2014/2015?
R: O programa de apoio ao Retorno Voluntário e à Reintegração apoia migrantes nacionais de países terceiros, em situação vulnerável em Portugal, que pretendem regressar voluntariamente ao país de origem e não têm meios próprios para o fazer. Apoiamos no aconselhamento, informando sobre a opção do retorno voluntário para que possam conscientemente decidir se esta é a melhor opção para dar continuidade ao projeto de vida.
O Programa também suporta os custos relacionados com a viagem e prevê aconselhamento e acompanhamento específicos na reintegração para facilitar a reinserção na comunidade de origem, de forma a promover um retorno mais eficaz e sustentável.
O Programa é visto pelos próprios migrantes e pelas organizações parceiras como um mecanismo de apoio eficaz e necessário, uma vez que é utilizado como último recurso por quem não tem nenhuma opção para ficar em Portugal.
 
P: Portugal precisa dos imigrantes para fazer face a problemas como a falta de mão-de-obra e a natalidade baixa? Pensa que o Governo português tem investido numa melhor integração dos imigrantes para fazer face a este cenário?
R: É um facto que a população Europeia está a envelhecer e Portugal também está a enfrentar um deficit demográfico que deriva de um conjunto de fatores, entre os quais um saldo migratório negativo. Apesar dos imigrantes não representarem por si só uma fórmula mágica para resolver os problemas demográficos de um país, contribuem sem dúvida para abrandar ou parcialmente reverter estas tendências.
Se olharmos novamente para a Europa, há inteiros sectores da económica em determinados países que dependem da mão-de-obra estrangeira para o seu funcionamento. Em Portugal também, apesar da crise, há sectores com forte procura de trabalhadores estrangeiros, como por exemplo a agricultura. Com a retoma da economia, poderá haver mais sectores a requererem trabalhadores com diferentes níveis de qualificação, permitindo compensar as incompatibilidades entre necessidades laborais e competências e qualificações disponíveis no mercado. É por isso muito importante que as migrações façam parte do debate e das medidas que poderão ser adotadas. Uma integração bem-sucedida, principalmente a nível laboral, é um passo fundamental para que quem chega a Portugal possa dar um contributo efetivo para a sociedade de acolhimento, para a sua economia, e para o seu sistema de proteção social.
 
P: A Comissão Europeia alertou já para a “pior crise de refugiados desde a II Guerra Mundial” e apela à solidariedade. Como se pode reagir a este flagelo? Que estratégias podem ser adotadas?
R: Nenhum país pode fazer face a estes fluxos sozinho. Por isso é necessário que a União Europeia aja como uma união, de forma coesa e solidária entre si, e não de forma fragmentada, como a soma de 28 países membros, cada um em defesa do seu interesse nacional. De acordo com os último dados da OIM, mais de 430.000 pessoas chegaram à Europa através do Mediterrâneo desde o início do ano até agora, e os números aumentam de dia para dia. É claro que estes fluxos estão a criar uma grande pressão migratória sobre os países da linha da frente, Itália e Grécia em particular. Mas temos que olhar para eles numa perspetiva mais ampla. Países vizinhos, como o Líbano e a Turquia por exemplo, estão a acolher milhões de refugiados. A União Europeia no seu conjunto, com uma população de cerca de 550 milhões de habitantes, deveria ter a capacidade para receber 400.000 pessoas. E vale a pena relembrar que não todos os que chegam têm direito a alguma forma de proteção internacional. Muitos entre eles são migrantes económicos que, tendo chegado irregularmente, não têm direito para ficar e deverão regressar aos seus países.
 
P: Face à atual “crise de refugiados”, o Alto-comissário para as Migrações sugeriu, em entrevista a um jornal, a criação de canais legais para que a única forma de vir para a Europa não seja neste modelo, tirando-se assim pressão ao negócio montado ao redor das migrações, ao mesmo tempo que se cria esperança. Segue esta linha de pensamento?
R: Absolutamente. Entre as propostas que a OIM apresentou às instituições Europeias, a abertura de mais canais legais é uma das medidas centrais que devem ser tomadas. A ausência de alternativas seguras e legais empurra estas pessoas diretamente nas mãos das redes de tráfico e contrabando de pessoas. Estas redes existem porque há uma procura pelos seus serviços.
O desespero é a força motriz destes fluxos, seja para quem foge à guerra, à perseguição e abusos, ou à pobreza. Apesar dos perigos que estas pessoas têm de enfrentar ao longo da viagem, valerá sempre a pena tentar. A única opção para uma vida melhor e em segurança é arriscar a vida. Contudo, quando falamos de canais legais, não podemos falamos só de canais humanitários (reinstalação, vistos humanitários, programas com patrocínio privado, etc). Em particular no caso da Itália, os fluxos são mistos e incluem muitos migrantes económicos, vindos da África subsaariana. Para eles também não há opção, porque neste momento não há canais legais para migração laboral. Esta dimensão deve ser incluída no debate e deve ser traduzida em medidas concretas de médio e longo prazo na nova Agenda Europeia para as Migrações.
 
P: O investigador sueco Ruben Anderson, da London School of Economics, autor do livro “Illegality Inc”, disse em entrevista a um jornal que “é preciso repensar a forma como se encara a imigração, e sair do círculo vicioso das respostas baseadas apenas no reforço dos meios de segurança”. Partilha desta opinião?
R: Sim, claro e deve mudar em geral, não só em relação à crise no Mediterrâneo. O debate público sobre as migrações – sobretudo em Europa – é frequentemente distorcido e utilizado para fins políticos, em vez de olhar para este fenómeno de forma objetiva e reconhecer o contributo positivo que os migrantes dão as economias dos países onde residem. Este é o primeiro passo para poder criar políticas migratórias baseadas em factos e não em estereótipos e falsas premissas.
 
P: Este investigador fala “na criação de uma indústria que vive do pânico e emergência e que acaba por produzir aquilo que se propõe eliminar, a imigração ilegal”. É dessa opinião?
R: Quando os sistemas de migração e asilo não dispõem de políticas adequadas para gerir os fluxos; quando os canais de migração regular são muito limitados e as políticas são excessivamente restritivas, os motores da mobilidade tornam-se motores de migração irregular, com altos riscos de exploração, abuso, e violência ao longo de todo o percurso migratório. Isso está a acontecer no Mediterrâneo e em muitas outras partes do mundo. É inevitável que, nessas condições, as redes de tráfico prosperem. Mas é importante ter a noção que estas redes não estão na origem do problema. Elas são um sintoma de que algo maior e mais profundo não está a funcionar nos sistemas de gestão e governação das migrações.
 
P: Ruben Anderson sugere que “em vez de se fomentar uma emergência com travessias arriscadas [por mar], podia-se abrir caminho para os refugiados chegarem à Europa de uma forma segura e digna, com um bilhete de avião…através de um sistema que implicasse o OK do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados e uma partilha de responsabilidades entre os países da EU”. Seria uma solução?
R: Não há sinais de que a situação irá melhorar no curto prazo. Estas pessoas continuarão a vir e os seus direitos básicos devem ser respeitados, tenham ou não direito à proteção internacional. Por essa razão, sempre considerámos que as operações de busca e salvamento fossem a prioridade absoluta. A seguir, temos a questão da criação dos canais legais para evitar que as pessoas tenham que enfrentar viagens tão perigosas e que haja um abuso e uma sobrecarga do sistema de asilo. Também vimos que medidas securitárias não são eficazes em travar os fluxos. Pelo contrário, conduzem a uma redefinição das rotas e ao prosperar do negócio dos traficantes. O aumento exponencial das chegadas por via marítima às ilhas gregas é o resultado da impossibilidade de utilizar a via terrestre e do facto que a travessia desde a Líbia até à Itália tem-se tornado demasiado perigosa.
 
P: Algumas publicações têm alertado para alguma confusão existente entre os conceitos de Migrante e Refugiado. Existe realmente esta confusão entre as duas situações?
R: Acho muito importante não confundir os termos. Mas também acho muito importante não uniformizar situações distintas e fluxos que são extremamente diversificados. O termo “refugiado” refere-se a uma categoria muito específica de pessoas a quem foi reconhecido o direito à proteção internacional de acordo com a Convenção de Genebra de 1951. Não todos os que chegam à Europa, e especialmente à Itália, são refugiados ou (para melhor dizer) potenciais refugiados. Estas pessoas vêm de diferentes países e por diferentes razões. Muitos fogem de conflitos, como no caso dos Sírios, outros fogem a situações de perseguição e regimes totalitários como no caso dos Eritreus, outros ainda migram por razões económicas. Às vezes, estas motivações podem sobrepor-se, tornando difícil a distinção em categorias. Neste momento, pela falta de canais legais, acabam todos no mesmo barco arriscando a sua vida. Algumas destas pessoas tornar-se-ão requerentes de asilo, se apresentarem pedido de proteção internacional, algo que está a acontecer de forma generalizada. Alguns entre eles serão reconhecidos como refugiados. Para muitos o pedido será rejeitado por não reunirem as condições. Antes disso, todos são migrantes, pessoas em movimento pelas mais variadas razões e todos merecem ser tratados com dignidade e no respeito do seu valor humano.
 
P: A chegada à Europa de milhares de migrantes e refugiados de barco - na sua maioria oriundos da Síria, Iraque e Afeganistão - tem levantado preocupações crescentes. Falamos de crise migratória ou de refugiados?
R: Estes são só alguns dos países de origem. Muitas pessoas chegam também da Eritreia, da Nigéria – primeiras duas nacionalidades dos fluxos que chegam à Itália – Somália, Sudão, e África subsaariana. Não a chamaria uma crise de refugiados, porque não reflete a complexidade destes fluxos, e porque o termo “migrante” no seu sentido mais amplo inclui também os que podem vir a ser reconhecidos como refugiados.